
As intempéries do espírito possuem, por vezes, o condão de nos impulsionar para que fintemos a tradição. Tenho uma predilecção especial pelo Domingo, aquele dia em que, pelas hordas às quais serviu, depreciativamente, de baptismo, me remeto, incondicionalmente, ao aconchego caseiro. A não ser que alguma hecatombe abale o instituído, uma simples aproximação à varanda para respirar outros ares que não o interior provoca-me uma súbita alergia, como se a visão dos magotes de gente nos caminhos que levam à praia rapidamente se transformasse no apocalipse instigador de um choque anafilático. Dada a fobia domingueira, opto por umas deliciosas vinte e quatro horas de pantufas, temperadas a ambiente familiar com direito a repasto tardio e condimentadas com suave e calorosa preguiça. Dolce fare niente...

Interrompido, por vezes, pelas coincidências de um breve inalar de ar gélido que faz estremecer a propositada apatia. Uma das incursões de final de tarde à atmosfera exterior revelou o poder mágico da nostalgia. O sol, na sua intrepidez de invasor invernal, fogoso, soberano, poderoso, chamariz para uma invasão à multidão de veraneantes de estação fria. Quebrei o hábito. Afinal, há coisas que existem para ser quebradas. Em boa hora... A brisa desconfortável do entardecer assustou a gente. Ou constrangeu-a a recolher-se nas centenas de viaturas plantadas à beira-mar, enquanto um desaustinado ser se intrometia na quietude de uma reunião dominical de gaivotas que, estranhamente, não entraram em alvoroço.

Talvez não tenham estranhado o alienígena que desafiava o vento cortante que as terá agrupado. Não fossem os inebriantes aromas salgados e julgar-me-ia a vaguear pelas entranhas de Bornes. Foi estranho sentir Macedo mesmo ali ao lado, paredes meias com o Atlântico. E decidi ir fazer uma visita à D. Aldina, transmontana de cepa, mulher das sete andanças, numa mostra do que melhor se faz por terras macedenses. Estava a pouco mais que o tempo de devorar umas baforadas de poluição tabágica (desta vez, aqueceu-me os pulmões e a alma).

Família recolhida, tempo de rumar à confusão da mostra de artesanato e produtos regionais. A "tasquinha" de Macedo há-de por lá morar, algures. A minha cidade adoptiva tem destas coisas. Por vezes, traz-me a MINHA "vila"...

Mais iluminação, menos iluminação, a D. Aldina haveria de ser descoberta, por entre aromas inconfundíveis à "terra". Ela lá estava, recolhida por detrás das suas alheiras, butelos, chouriças doces...

Que pena... Hoje não cheirava a pão e a folar... Só pairava no ar a simpatia da D. Aldina. «Oh, meninos, que pena! Podiam ter telefonado!» Não faz mal, D. Aldina! Quinta-feira há mais... Lá voltaremos, na peugada de um folarzinho, quentinho, saboroso, fora de época. E daquele pão delicioso, com sabor a aldeia, a avó, a tias, a saudade... Há um tempo para tudo, mesmo para continuar a salivar durante mais uns dias. Até lá vai gelando o tempo, não se gelem as almas, que a agrestia está de visita a terras mais a nordeste.

Por terras costeiras o frio não quebra a alma, mas quebra os ossos. Amanhã devo ter o relvado pintalgado de branco, quadro de lembranças de "carambelos"... E hoje convenceram-me a invadir um Centro Comercial, daqueles cheios de gente desconhecida, em descoordenado formigueiro humano, onde me sinto como peixe de água doce no mar... Nado, mas há sal a mais... Procuro os únicos refúgios onde consigo respirar sem assistir a assaltos de olhar consumista a prateleiras. Foi o rebuçado que serviu de convencimento... «Vá lá... Enquanto vamos às lojas que queremos, podes ir à Wook, à Bertrand e à Fnac...» Pois, pois... Mas até lá chegar vou distribuindo e recebendo uma inusitada quantidade de "desculpe" e "dá licença"...

Depois é o caos de sempre para me arrancarem daquele universo onde moram duas das paixões da minha vida: livros e música. E hoje tinha a benesse de um concerto na Fnac. O único e distinto motivo para ser um ponto na multidão... Foi curto e não me soube a Domingo... Mas soube-me a diferente... E estive ao lado de um pedaço da minha terra... E tinha à espera a saudação de conforto do quentinho da lareira. Como se Trás-os-Montes me tivesse vindo fazer uma visita para jantar, tal a forma como o ar fica impregnado de aromas de oliveira, enquanto as chamas dançam, num abraço de morte a quem já azeite deu. As árvores morrem de pé... Mesmo queimadas, num último momento de dignidade de quem aquece quem frio tem. Nunca mais chega a próxima semana...
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