Bem Vindo às Cousas

Puri, se tchigou às COUSAS, beio pur'um magosto ou um bilhó, pur'um azedo ou um butelo, ou pur um cibinho d'izco d'adobo. Se calha, tamém hai puri irbanços, tchítcharos, repolgas, um carólo e ua pinga. As COUSAS num le dão c'o colheroto nim c'ua cajata nim cu'as'tanazes. Num alomba ua lostra nim um biqueiro nas gâmbias. Sêmos um tantinho 'stoubados, dàs bezes 'spritados, tchotchos e lapouços. S'aqui bem num fica sim nos arraiolos ou o meringalho. Nim apanha almorródias nim galiqueira. « - Anda'di, Amigo! Trai ua nabalha, assenta-te no motcho e incerta ó pão. Falemus e bubemus um copo até canearmos e nus pintcharmus pró lado! Nas COUSAS num se fica cum larota, nim sede nim couratcho d'ideias» SEJA BEM-VINDO AO MUNDO DAS COUSAS. COUSAS MACEDENSES E TRASMONTANAS, RECORDAÇÕES, UM PEDAÇO DE UM REINO MARAVILHOSO E UMA AMÁLGAMA DE IDEIAS. CONTAMOS COM AS SUAS :







terça-feira, 30 de março de 2010

Portuguinder Sorpresa

Havia tempos em que a época pascal possuía outros encantos. Até a meteorologia parece ter-se prostituído aos ventos da modernidade… Ainda estarei longe da caducidade. Não me espanta, por isso, que o meu sistema neuronal persista em associar a Páscoa ao período primaveril. Flores, verdejantes campos, aves chilreantes, presságios de Verão… Estou atolado, até aos superiores extremos capilares, da chuva, do vento, do ar fresco que persiste em encarcerar-me… Em jeito de compensação, distracções ao avesso, decidi adaptar-me à permeabilidade, que inflexibilidades não conduzem a lado algum. Troquei as tradicionais amêndoas de Páscoa, aquelas mesmo, artesanais, duras como as extremidades de bovídeos, pintarolas de tripartidas cores: branco, azul e rosa… E cedi à tentação, a provinda da publicidade que inunda os écrans, numa infernal sequência de consumismo natalício, seguido de carnavalescos acessórios, com paragem no apeadeiro do Dia do Pai, estações pascais, veraneantes férias, regresso às aulas… Blheargh… Finalmente, aderi aos “óbos de tchiculate”! Diz o marketing que o seu recheio detém a capacidade de divertir pais e filhos… Contudo, numa desesperada tentativa de salvar a economia nacional, tomei a infeliz decisão de comprar o que é nosso. Contrariando as iniciais pessimistas expectativas que apontavam para um hercúleo esforço em busca de Portuguinder Sorpresa, eis que, ao virar da esquina, ali estava um escaparate decorado a “portugalidade”. Os olhos redobraram o brilho perante tão apelativo embrulho. O meu neurónio racional, numa desesperada tentativa de assumir o comando dos desenfreados parceiros, mais vocacionados para a ingenuidade, gritou, alto e bom som: «Quando a esmola é muita, o pobre desconfia!»… Mas os pobres dos rasos soldados, ouvidos não deram à voz de comando. Acossados por insana loucura, numa quase orgia predadora, atiraram-se, quais esfomeados seres, ao ovo que ocupava o primeiro lugar da fila. A ansiedade tomou conta do ambiente… Qual seria a surpresa? Saiu uma A4 e um Túnel do Marão para montar!!! Dois em um!!! O racional neurónio, do alto do seu pedestal, confidenciou aos seus botões: «- Saiu uma A4 e um Túnel do Marão? Eu chamo-lhes malabarismos»… Ripostaram os botões: «- Não sejas tão negativo! Estamos curiosos pela abertura do próximo Portuguinder Sorpresa!»… A angústia não tardou em dissipar-se. Três em um! Desta vez, recheio constituído por uma companhia de electricidade, uma solidariedade pintada a hipocrisia e uma linha do Tua! Tudo para montar, também! Esperem!... Este Portuguinder Sorpresa tem um fundo falso… Abram! Traz uma barragem escondida! E um comboio anfíbio!!! E contém ainda um bolo chinês da sorte! «- O que diz? O que diz?»… Superadas as dificuldades para aceder ao neurónio racional, supremo comandante de desordenadas tropas, a leitura foi efectuada em voz alta: «- A ingenuidade transmontana paga-se com a produção de 65% da energia eléctrica nacional. O futuro reserva-vos a insistência na retribuição em migalhas»… Ao invés de apupos, o ambiente foi invadido por calorosos aplausos e unânimes mensagens de agradecimento por tão promissor futuro… Do interior da algazarra foi possível percepcionar um «Abra-se o próximo ovo!». Surpresa geral… Helicópteros!!! Com autocolantes do INEM para decorar!!! Desprovidos de tripulação? Desta vez não é o Tribunal de Contas… Não faz mal! Os helicópteros voam sozinhos e, com um pouco de sorte, voarão para outro local que não o inicialmente prometido. E, afinal, este Portuguinder Sorpresa também traz Serviços de Urgência para montar!!!... Num último assomo de coragem, o neurónio racional dirigiu-se à multidão, tentando pôr cobro à colectiva euforia, manipulada por subversivos agentes trajados a beneditinos corredores. Subrepticiamente, sem que os agentes notassem a manobra, foi aplicada uma forte dose de antídoto, despertador da letargia reinante. Olhos abertos, mentes despertas, descobriu a multidão, afinal, que em cada Portuguinder Sorpresa, os kits são sempre os mesmos, apenas lhes muda a cor. Sai sempre malabarista! Impune… E da impunidade vamos vivendo, alegremente sorrindo para uma qualquer câmara de televisão que surja a gravar o isolamento, a pobreza, a solidão, a tristeza, a doença, a velhice… Como transmontano, já não como mais Portuguinder Sorpresa… Ainda que me tirem as poucas amêndoas que restam… Podem roubar-me a comida, mas jamais me roubarão a fome…

segunda-feira, 29 de março de 2010

Ramos de Domingo

Noutros tempos não era assim... Imbuídos de um qualquer comunitário espírito, embrulhados na tradição do espírito pascal, impulsionados pela infantil alegria que não se explica. Um ramo de oliveira, temperado a rosmaninho e, na aldeia estando, decorado a "doces" e bolachas... Afinal, para um puto, o que se sobrepunha a qualquer benzimento do ramo, eram os "doces", sacralizados numa boca que os saboreava sem se deter na benta água que regado os tinha. Nos dias que antecediam o Domingo de Ramos esboçava, mentalmente, o desenho do ramo. Teria que ser distinto... A realidade, porém, é que a distinção não ultrapassava a banalidade de anteriores anos. Invadia o olival que se situava nas traseiras de casa, amputava as oliveiras de pequenos pedaços seus e olhava-as com tristeza, desculpando-me de tal acto por restarem imensos ramos ainda. Acomodava-os junto ao muro e descia até aos lados da Chenop. Onde hoje existe proliferação de marca humana, existia um quase selvagem estado de arbustivas formas, no meio das quais se encontrava, aqui e ali, rosmaninho. E outras flores silvestres mais... A casa chegado, chegava, de igual forma, o habitual "raspanete": «Para que é que queres as flores? Não te disse já que o ramo não leva essas flores?». Mas eu insistia... Poderia ser que algum ano a coisa passasse despercebida. Nunca passou...
Entretanto, cresci. Com o crescimento, surgiu outra visão e, com esta, outra consciência. Que para aqui chamada não é... Hoje, já não vou entregar o ramo aos padrinhos. Aliás, desconheço se ainda tenho padrinhos. Mas tenho afilhadas e afilhados! Que persistem no inigualável sorriso da tradição. E, como não devo ser um mau diabo, continuo a ser presenteado com o "ramo", ainda que o dito, em algumas circunstâncias, não seja em formas florais. Talvez seja um utópico, mas os meus afilhados não são uma qualquer "coisa" que ajudamos a baptizar. Nem são o motivo para mais um mega almoço que, com o decorrer dos anos, se esquece. São, mesmo!, aquilo que deveriam ser: os meus segundos filhos. Por encarar a coisa dessa forma, ganho-lhes a amizade e, com sorte, ainda faço uma equipa de futebol. De andebol, já tenho... Os tempos modernos trouxeram o alheamento. Perdem-se as tradições, ocultamo-nos por detrás de materialistas contingências de vida. Mas há gente que persiste na manutenção de ancestrais formas de ligação. Será por isso que continuo a ter os meus Ramos de Domingo?

terça-feira, 23 de março de 2010

O João Semana de Talhas

Há jantares especiais. Daquelas refeições temperadas com a simplicidade do ser, caras lavradas pela charrua do tempo, gente só e desamparada, gente que vive sem consciência ter que outra gente há que a sua existência desconhece. Talhas... Uma aldeia, das muitas aldeias que constam do rol cujas coordenadas geográficas, para os senhores que se pavoneiam pelos corredores de São Bento, se resumem a "cu do mundo"ºN-"cu do mundo"ºW... Uma aldeia cujo futuro se escreve a letras reumáticas. Uma aldeia, que poderia ser uma qualquer outra, que fez repousar, com as suas cores, com o seu sotaque, os talheres que ajudavam a saciar o estômago. Órgão que, repentinamente, entrou em animada convulsão, enquanto, mais acima, a emoção ia apertando o peito, e os sacos lacrimais se aprestavam para expelir uma tímida gota. Gente votada ao abandono, uma réstia de esperança na cavalgadura que ampare o desajeitado andar, azedos queixumes de quem vê o sombrio pairar do carrasco que o tempo é. E não há luz que ilumine a sombra... Ou haverá? Neste caso, felizmente, há! Caso isolado, eu sei, mas exemplar, sei-o também. Aquilo a que tive o privilégio de assistir no programa "30 minutos", mais que um médico-autarca que presta um impagável serviço a uma comunidade, é a pureza das emoções de uma aldeia macedense. E, por inerência, caso meu, a raiva por que sinto consumir-me sempre que assisto ao desprezo a que o "meu" mar de pedras é votado. Neste caso, a raiva foi substituída pelo sorriso trazido por gente simples e genuína, do campo nascida, de direitos roubada. Gente que apenas quer alguém que lhe compreenda as dores... Especialmente as que brotam da alma. O Dr. Benjamim parece entender ambas. Sabe-se lá porquê, trouxe-me à memória o secundário personagem de Júlio Dinis... Obrigado...

sábado, 20 de março de 2010

Abril, helicópteros mil

A pausa de uma semana pode trazer o estarrecimento pela complacência do verdugo. Será breve, eu sei, que as vergastadas no depauperado Reino do Esquecimento, vulgo Trás-os-Montes, regressarão com uma rapidez superior ao tempo que as costas aliviam da descida do chicote. Mas, enquanto o dito rasga o ar no sentido ascendente, deleite-se o espírito transmontano com o anormal, quase alienígena, fenómeno de redobrada atenção à agonia porque vai sendo tomada a saúde do moribundo Reino. Contrariando as mais pessimistas (e realistas) expectactivas, Macedo vai ser dotado de uma Clínica Oncológica, ao abrigo de uma parceria entre o CHNE e o IPO. Os maus ventos que anunciavam a catástrofe sofreram uma alteração de rumo... Esta chamada aqui não ocorre pela simples dotação de um serviço de saúde. Ocorre porque não merecemos ter que nos deslocar 200km através de um IP4 mal parido e mal conservado, quando sofremos as agruras de uma visita indesejável. Já basta a malfadada visita... Ainda no universo da saúde, ou no da falta dela... As célebres hélices do INEM reencontraram a trajectória da sua viagem aos confins da galáxia e aterrarão, com um atraso de 2 anos, algures por Macedo, num qualquer próximo mês de Abril. Digo "num qualquer próximo" porque o ano não está especificado... E, gato escaldado de água fria tem medo... E porque de água falei, aguardo, impacientemente, que as ditas hélices não tenham estado expostas à intempérie e não tragam o epíteto de "enferrujadas"...

sexta-feira, 12 de março de 2010

Preciosidades de uma Lamas de encanto

Deixar-me envolver pela singularidade de Lamas é, também, percorrer as restantes 65 aldeias do concelho macedense. Mais castanheiros, menos oliveiras, mais Terra Fria, menos Terra Quente, todas possuem a sua igreja e o seu adro, as suas festas, os seus santos, as suas fontes de mergulho, os seus pombais, os seus cafés. Todas estão desprovidas da monumentalidade encontrada noutros recantos, todas estão desfiguradas pelo isolamento e pela importação de conceitos além-fronteiras. Visitar uma qualquer aldeia, é sentir o desassossego do xisto moribundo, é assistir à agonia da genuinidade. Como se a pureza transmontana fosse uma doença a erradicar… Certo é que somos o legado de uma série de equívocos históricos, políticos e económicos, mas o Alentejo também o será, e não é por isso que deixo de sentir inveja da tipicidade de uma qualquer aldeia alentejana. Ou, para não ir para tão meridionais terras, corrói-me a alma não ter por cá nenhuma Sortelha ou Monsanto. Mas somos assim… Talvez o isolamento e a pobreza a que fomos votados nos tenham toldado o discernimento, talvez os nossos espíritos tenham sido amaldiçoados por lendas de lobos e corujas… Ou de uma qualquer moura encantada, daquelas que, mais que provavelmente, nem tempo tiveram para molhar os pés no Azibo ou no Sabor… Ou talvez o granito das Beiras ou a cal Alentejana possuam mais valor que o nosso xisto… Ou talvez tardiamente se comece a detectar o que arredio andou por muitas décadas: o orgulho de ser transmontano. Como se, agora que a desertificação nos vai tomando de assalto, sentíssemos que temos de preservar o que, envergonhadamente, se escondia sempre que ocorria uma qualquer aventura para além Marão. Não falo disto apenas por saudosismo… Faço-o pelo orgulho com que sempre levei o nome deste mar de pedras aos cantos por onde passei. Presunçosamente, fui passeando o nome de Trás-os-Montes e de Macedo, mesmo que, inúmeras vezes, me confrontasse (e ainda confronte) com conterrâneos que preferem assumir a sua condição de aculturados, como se ser transmontano fosse uma qualquer metástase a necessitar de ser extirpada. Cousas… Esta minha faceta contestatária deve provir de alguma aberração cromossómica gerada pela simbiose de genética vinhaense com a macedense… Nunca se sabe… O que se sabe ou, pelo menos, o que sei eu, é que persisto, dentro de uma qualquer presumível anormalidade, a embrenhar-me pelo que resta da nação transmontana. Sempre que a oportunidade surge, despeço-me do asfalto e de helvéticos telhados que corrompem a paisagem e deixo apagar a minha existência pela sumptuosidade de um dos muitos caminhos que rasgam os montes, abandonando-me ao vento que sopra, ao frio que gela, a inolvidáveis visões do pulsar de uma terra. É um inenarrável prazer olhar o transmontano mundo a partir do alto. Ouvir o diálogo do arvoredo, perscrutar o horizonte em busca das serranias que protegem a Bacia de Macedo, mergulhar nas profundezas do profano, sentindo o sagrado. Ter uma conversa a sós com a Senhora do Campo, enquanto imagino a azáfama que do recinto se apoderará dentro de pouco tempo. Olhar a “minha” Lamas lá do alto, protegida pela Santa e pelo São Sebastião. Sentar-me num dos artesanais bancos de pedra e ouvir o ribeiro que corria por entre o lamaçal, dividindo a aldeia em duas. Beber água na Fonte de São Brás, reposição de forças antes de infantis correrias pela Canelha e por Cristelos, pela Fonte do Pombo e pelo Facho… Ou pelo Mural, Cedelais, Sortes… E pela “Rebei de Côdes”… Mergulhar, em irresponsáveis acrobacias, no poço que havia por cima do campo da bola, “capar” uns melões e umas melancias, comer uma maçã, de caminho… Empoleirar-me num “sardeiro” e subordinar a legalidade à gula… Correr, desenfreadamente, monte abaixo porque a burra se soltou… Tentar perceber o que era a “aixada”, a “agrade” e a “seitoura”… Compreender, quando subia para o carro das burras, porque me chamavam “estadulho”… E ouvir aquele melancólico chiar que ecoava pela aldeia. Enquanto percorria os montes em busca de musgo e de um pinheiro “amanhadinho”para o presépio… Ou colhendo uns agriões para a salada, bebericando da “augueira”… Manhãs frescas em que aprendia a colocar “pescoceiras”, artilhadas de “aludas”, voltas imensas à espreita da melhor caçada… Chegar a casa “imbuligado”, “tchêinho” de fome e debater-me com um “carólo de centêo” e um “cibinho” de presunto, ajudados a escorregar com uma laranjada ou uma gasosa. Ficar inebriado pelos aromas do “caldo ó lume”… Pular o muro de acesso ao pátio da escola, para jogar à macaca, ao prego, ao “rou-rou” ou “ó q’calhasse”… Empertigarmo-nos, andarmos à “bulha” com uns e “ingaliarmo-nos” com outros. Mais “lostra”, menos “lostra”, mais "biqueiro”, menos “biqueiro”, mais “lapada”, menos “lapada”, no fim andávamos às “carritchas” uns dos outros, fazíamos umas “pintcha-carneiras” e com um “arranca-cebada” ficávamos camaradas de novo. E amanhã havia mais… Se houvesse “carambelo, inda daba pra sbarar”, dando-nos “a risa” com os que se “pintchabum”. “Depeis da cêa”, ligava-se a “trabisão” ou, quando a não havia, punha-se o gira-discos a rodar, enquanto nos “imbutchinábamus” uns com os outros porque um queria ouvir, incessantemente, a mesma música. A música… E a mítica banda… Empoleirada no velhinho coreto, enquanto a mocidade rodopiava com mais “ua moda” e os putos corriam pelo meio do arraial numa saudável disputa sobre quem apanhava mais “barelas”. Depois veio o “altofalante”, seguido dos “cunjuntos”… E os novos tempos finaram as “barelas”… Entretanto, o gélido vento fez-me despertar desta nostálgica viagem. O banco de pedra arrefeceu-me até às entranhas e nem o poluidor de ambiente que acendi me presta calorífica ajuda. É hora de descer até “ó pobo”. Não sem fazer a habitual romaria ao último repouso de antepassados e conhecidos. Só para lhes sentir a presença e para um póstumo obrigado. Olho de novo os castanheiros desnudados, pressentindo a presença de um qualquer tocador de gaita-de-foles… É o vento… E uma ave de rapina que sobrevoa o souto em busca de desprevenida presa…

quarta-feira, 10 de março de 2010

Fome de terra


A lugubridade dos dias pareceu ter atingido o seu expoente máximo nesta Sexta-feira. A chuva caía num incessante lacrimejar dos céus, como se a condensação tivesse acumulado décadas de tristeza. O vento assobiava a sua melancólica melodia, lançando as gotículas de chuva num caótico estado de louca correria, numa aleatoriedade direccional de deixar qualquer trauseunte próximo da insanidade mental. O vizinho curso de água tresandava a excesso da mesma, deixando o imponente arvoredo transfigurado em isoladas ilhotas no meio da mancha castanha que corria desenfreada. A névoa surgia como um fantasma pairando, ameaçador, indutor de previdência, aconselhando a uma daquelas Sextas-feiras de ficar pelo aconchego caseiro. Ao fundo, o som rouco das ondas assemelhava-se a um trovejar sem raios. Mas a voz da saudade abafou o agudo sibilar do vento, a contínua percussão da chuva e o batuque da espuma branca. Quais Ulisses, simples gente do xisto, armada de vontade de enfrentar o Cíclope. Sem armas, com bagagens, tempo de cumprir a penitência de duas horas enfrentando a tempestade. E que tempestade! O contínuo movimento das escovas do pára-brisas quase hipnotizava o condutor. O vento, desalmado, perseguia-nos, quais fugitivos, sempre no encalço, provocando uma perigosa dança no asfalto. A transposição da ponte de Vila Pouca de Aguiar constituíu uma das mais arrojadas acrobacias a que alguma vez havia sido exposto. A subida do Alvão assemelhou-se à uma qualquer encenação teatral a que assistimos sentados na primeira fila e onde a cortina branca nunca mais abre para vermos o espectáculo. Alguém deixou as janelas do teatro abertas... Que ventania! Que chuva! Que nevoeiro! Que tridente!!! Valeu pelo suspiro da chegada, pelos calorosos sorrisos que aquecem até a mais penada alma... E pela magnífica galinha caseira estufada que tinha à espera para reconfortar a adrenalina da jornada! Seguida da incursão ao "meu" tasco da aldeia de anos, onde residem mais uns sorrisos abertos pela chegada de um filho pródigo, um café bem tirado e mais um "copetcho" para reavivar espíritos enregelados. E ainda tive direito a bónus de coelho do monte. A ementa do almoço do dia seguinte não foi passível de discussão! O Sábado acordou com as mesmas tonalidades dos dias anteriores. Taciturno... Gosto de Macedo pintado a sol... Aquele ambiente soturno, monotonia do cinza, transforma-me num asceta da lareira. Aprecio passear pela minha "vila" debaixo do quase anonimato iluminado a astro-rei. À falta de melhor, recolhe-se mais "ua gabela" para colmatar o frio e colhem-se, entretanto, umas folhas de tomilho e alecrim para animar o desgraçado do Oryctolagus cuniculus que haveria de servir de repasto. O mais novo da descendência saiu das imediações ao ser confrontado com o Bugs Bunny que jazia, inerte, na bancada, aguardando que lhe extirpassem o que lhe restava de aspecto de coelho. Diga-se que, para o progenitor, também não é espectáculo que lhe encha as medidas... Haveria de saber melhor que o proporcionado pela vista, cozinhado na ancestralidade de um pote de ferro. Divinal... Magistral... Indescritível... Quase irrepetível... Sabores a monte e a terra, que entram na suprema esfera do inesquecível... Estômago reconfortado, hora de zarpar para a aldeia, que a gente vai sofrendo as agruras da passagem do tempo e as marcas vão-se acentuando. Por vezes, há que dar um "cibinho" de calor humano à gente que nos marca a vida e carrega carga genética semelhante à nossa. Particularmente quando as energias se vão esvaindo pelo peso dos anos. Irremediáveis contingências da vida... Vida que deve ser celebrada. Mais não seja com uma visita ao Centro Cultural para uma revivescência de velhos tempos... E já vai o monólogo longo...

sexta-feira, 5 de março de 2010

A safra do az-zait

“Olea prima omnium arborum est”

A adversidade carrega consigo, por vezes, a surpresa. O ano não correu de feição a uma das grandes culturas mediterrânicas que herdámos: o olival. Surpreendentemente, ainda que com condições climatéricas aziagas, a colheita de azeitona da última campanha superou, a crer nas notícias provenientes da Cooperativa Agrícola, o expectável para oliveiras expostas ao rigor de um Inverno anómalo (se atentarmos que, no último decénio, tivemos 6 dos anos mais quentes do último século). Ao olhar, em pleno séc. XXI, para esta árvore pela qual nutro uma estranha paixão, não resisto a uns breves apontamentos sobre este ser vegetal híbrido, Olea europaea para os entendidos. Um híbrido ser que, ainda que cantado desde imemoriais tempos («E com um ramo de oliveira o homem se purifica totalmente.» Eneida de Virgílio), com vestígios neste recanto luso desde a vetustez das épocas, elevado ao Olimpo por Gregos, idolatrado por Romanos, popularizado por Árabes, só na história recente teve o seu auge por transmontanas terras. É difícil imaginar a Terra Quente privada de olivais, nas suas cotas abaixo dos 700m. Contudo, os apreciadores do aurífero líquido gratos devem estar à filoxera do séc. XIX. A dita praga da vinha foi o mote para um revestimento distinto das encostas da Terra Quente. Não que já em pleno séc. XVIII não existissem freguesias, como a dos Cortiços, referidas como terras que produziam «azeite em abundância». Não que, na primeira metade do séc. XVI, surjam as primeiras efectivas referências à nobre oliveira por terras transmontanas. Basta crer em João de Barros quando diz «…e muito pouco tempo há que ali se plantàrão as primeiras oliueiras, e agora há muito azeite na terra», referindo-se ao termo de Mirandela. Ou no Contrato dos Maninhos relativo ao termo de Miranda, de 1532, «nos lugares onde isso possa ser, plantar dentro de quatro annos quarenta oliveiras». Contudo, se recuarmos à época medieval, a economia rural estava despida de olivais. Pode dizer-se, sem relutância, que a ementa desses nossos antepassados estava desprovida do tão apreciado azeite. Os diplomas e documentação medieval são quase omissos em referências à oliveira e ao azeite. Predominam as relativas à vinha e aos cereais, nomeadamente no que aos textos das Inquirições diz respeito. E, mais dúvidas houvesse, em nenhum exemplar de forais transmontanos surge o azeite como produto passível de pagamento de portagem. É-me difícil imaginar a vida sem “ua seladinha” temperada com azeite, o de “berdade”, não aquele que nos impõem com galináceos de duplo L. Mais difícil é tragar o obscurantismo em que vive o Azeite DOP Trás-os-Montes. Nada de exclusivo… Não me apetece falar de Terrincho, de Churra Badana, de Batata, de Castanha… Mas apetece-me dizer uma verdade irrefutável: somos incomensuravelmente bons e negamos a exploração do bom que temos!