
A saudade, enquanto deturpação do espírito, é um malabarismo estupidamente português. Dizem-na um fenómeno parido de uma qualquer metamorfose em que um pincel ganhou vida e desatou a calcorrear uma tela de cores garridas, adulterando-lhes a essência, enegrecendo-lhes as entranhas. Depois... Bem, depois nasceu uma aberração em que um inusitado fenómeno de lixiviação transformou umas tonalidades musicais alegres numa coisa a que deram o nome de fado. O fado português... O fado do destino... O fado das lágrimas... A triste, responsável e sensata forma de colorir um pedaço de terra assemelhado a um rectângulo. Colorir ou, inúteis vozes, enterrar a cabeça na areia, aguardando que o destino coloque a cauda a sarapintar o céu de corantes que façam lacrimejar a mais alegre das almas. Passada esta espécie de diarreia mental, hora de insanos acometimentos à verdadeira saudade, aquela que brota de uma irresponsável forma de estar, estranhas raízes "lusitanas" o afirmam, que sentir saudade não é conforme hábitos de alegre sentir.

Desequilíbrios à parte, atentando nas leis do fado, também sinto saudade. Uma estranha saudade em que a alma não chora, antes cerra as pálpebras para recobrar os sentidos de efeitos de estadias por terras do Martim, de Macedo o dizem. Alegremente sentindo o pulsar de uma terra que marca a fogo e aço a vivência de um cavaleiro que, desmesuradas bocas, perdeu o anonimato da identidade. Que se dane! Foi-se a incógnita, permaneceu a vontade de vomitar palavras! Desenhadas a orgulho e a outras coisas mais. Ou cousas... Que tentam ludibriar, positivamente diga-se, este execrável fado que celebra a profecia da desgraça... Prefiro, indubitavelmente, a graça sem "des". É mais cómoda e confortável.

Mais não seja, ajuda a aliviar o fardo do vazio que se aloja em nós quando nos vemos privados de um mundo que julgamos nosso e do qual nos vemos amputados. É um pouco assim que me sinto. Estendi as palmilhas por Macedo durante uma efémera temporada e as agulhas desmagnetizaram, virou o sententrião a meridionais latitudes e confundiram-se os sentidos. Como se o Nordeste se tivesse transformado num qualquer algures situado nos antípodas. Mas está lá, no mesmo sítio de sempre, aconchegado a Bornes e Nogueira. Eu é que já lá não estou. Mas é como se estivesse, ao virar da esquina, numa qualquer esplanada da Agostinho Valente. Aspirando respiráveis ares desprovidos de essência a combustão. Como se sente a ausência dos ares de Bornes! E nem a brisa marítima consegue disfarçar os aromas do corrupio dos círculos de borracha corroídos pelo asfalto. As narinas hão-de resignar-se... Novamente... Faz parte do ciclo, até à interrupção para uma nova incursão de fim-de-semana.

Num qualquer Setembro, ali ao pé, virado o augustino mês, numa breve angústia temporal, revivescências de trajectos sempre tidos, ou quase sempre, que o Marão é feito de travessias muitas. Numa "bota" onde o Norte e o Leste se cruzam, cumplicidades geradas pela inconfundível paixão onde a Terra Fria se tornou amante da Terra Quente, gerando uma prole talhada a Inverno e Inferno. Desta vez, ficou para trás o sufoco das tardes regadas a forno, o suspiro pelas noites arrefecidas pelo brilho estelar. Há sempre o reverso da medalha. De um lado, as saudades... Do outro, um ansiado sossego nocturno, sem janelas abertas para que entre a atmosfera retemperadora da escuridão. O Atlântico tem destas coisas: "à neitinha fáze frezquinhu'e"... Ufa!!!