Volatiliza-se o tempo, ensimesmado, o peso das pálpebras parece flutuar na excitação de revivescências que aproximação têm. Dentro de horas poucas, há que madrugar, o diz gente de árduas tarefas, ajeitam-se electrónicos ponteiros de um duo de despertadores, não vá Morfeu tecê-las. Desperta-se, ainda o galo não cantou, pois se galináceos já a "vila" não povoam, neurónios em agitação, descoordenados movimentos de uma falsa percepção do dia que há pouco a noite abandonou. Na refrega de uma batalha entre a vontade de ir e o peso do conforto de um leito, vence a primeira, saber-se-á lá por que armas. «Tá a despatchare, meninos, c'um catantcho, bamos prá segada!!! Drumis na biaige»...
Tenta-se avivar a ancestralidade com tonalidades nascidas das pedras... O breve percurso pedestre até ao Jardim reaviva a noção, matinal frescura a sacudir o escalpe, incrementa a força que parece finar. Já esperam os companheiros de jornada... Estremunhadas mentes em alvoroço, à direita, metálico e alvo arvoredo da serra em saudação, Castelãos já lá vai, palavra puxa palavra, o Santo Ambrósio nunca pareceu tão perto, Limãos em recepção a crentes nas tradições. Penetra-se num distinto planeta de terras coloridas a sangue, parece aqui residir xística hemoglobina, Umbigo do Mundo, o Rheic suprimido por sequências de um qualquer sei lá, alóctones às "carritchas" de autóctones, geológicas linguagens, ou pedras que contam a estratigrafia do tempo. Há milhões de anos não havia segadas...
Ao virar da curva, "santandre de moraaes", refastelado ao abrigo da Paixão, histórias muitas de lonjuras tantas, a Senhora do Monte as guardará. O ajuntamento grande não é, aqui e ali, um vestígio do que se seguirá. Talvez a camarada de segadores fotógrafos tenha dado corda em demasia ao relógio... Subitamente, o aglomerado ganha outro colorido, olhares de soslaio aos forasteiros, chega o Sr. Joaquim para fazer as honras da casa, distinto defensor da terra, venha de lá a "mãozada" de virtual amigo de sociais redes! A descendência insiste em abstrair-se do mundo, sonos por dormir, há sempre um improvisado banco para refastelar o peso de uma noite mais breve que o habitual. Arrancam as tropas, chapéus de palha a condizer, típicos trajes de outrora, afiam-se foices para cerealífera guerra, segue o jumento no cortejo, regalam-se as vistas com o que inusual vai sendo. Sorrisos em riste, um apetrecho aqui, outro acolá, vinho há-de haver para refrescar os "por dentros", que a faina enrijece os músculos mas desgasta o estômago. Começa a refrega, discutidos preços, pareceu-me ouvir "setent'e cinco scudos, bôs tempos que bu-jiu digo ou!". Agora é tudo "im ouros"...
Ah, valentes! Vai tombando o cereal, avança o pelotão sem grande resistência, merecido retemperar de forças a vínico sentir, ou água para compensar. Chegam retardatários, faces emolduradas a vontade, um sorriso mais, distinta gente que aquece a alma. De súbito, ouvem-se vozes ao desafio, cantarolar aqui, uma piada que surge do nada, gargalhadas entrecortadas por mais um copo para amansar a dureza de ressequidas gargantas. Vai-se erguendo o astro, despoja-se o corpo das vestes protectoras de matinal brisa, vão-se debatendo inferiores extremidades com as estocadas do restolho. Quem por gosto corre, não cansa...
Saltita-se para direita, apressa-se o passo para a esquerda, tenta obter-se o melhor ângulo. Desatam-se as cordas do fascínio, poderosos momentos que apaixonam, inexplicável intensidade de um Reino, saudades do futuro ou qualquer paradoxo que não cabe no universo das palavras. Acaricia-se o orgulho nestas terras com sorrisos em alternância com desregrada emoção, talvez apeteça soltar uma qualquer lágrima, regressões ao pó da infância. Desvia-se o olhar para hábeis mãos que o tempo curou, marcas que apetece registar, é indescritível a "proa" que vai assaltando o que escreve. Soltam-se registos nunca registados, perenidade de memórias que se julgavam caducas,
um trinar de inexistentes cordas desafinadas, talvez sejam alinhados "stadulhos", corre-se desenfreadamente em direcção àquela melodia tão familiar, canto de carpideira, o chiar de um carro de bois! Sente-se um estranho aperto no peito, atroz felicidade, se a há. Arrepiante, inenarrável, vulgariza-se o tempo na efemeridade de um segundo, o sabor da eternidade guardado num frasco desenhado a objectiva. Fui bafejado pela lotaria da imortalidade, gravada naquele momento de um concerto a duas rodas! Alguém tivesse percebido o olhar de criança e veria o resgate do encantamento de uma qualquer infância passada entre montes e vales. Cousas de um Reino Encantado... Pegue-se na "spalhadoura", desafie-se a gravidade, mansa junta em apego à terra, orgulho dos donos, que "mim contcha" que estava a gente!
O alvoroço dos dias... Carros carregados, arfam os bichos para a posteridade, sorriem segadores com a colheita. Hora de retemperar energias, há-de o almoço chegar, avolumam-se conversas na permanência de uma sombra. Afaga-se o dorso da imponência, num Trás-os-Montes que definhando vai, abre-se um ficheiro especial para recuperar memórias no porvir. Um registo mais, apenas, e outro mais de seguida, parecem as opções exceder a capacidade de retenção. Inclui-se um plano mais, só mais outro, e ainda outro mais. Aproxima-se o calor da hospitalidade, convidados estamos para o repasto. E que repasto! Opíparo, suculento, saboroso! A simplicidade das coisas inesquecíveis: as sopas da segada! «-E atão num bota ua pinga?»... Claro que sim, para aconchegar! Ainda há lugares assim, onde se aplaca a sede com a pureza de gestos simples. Ainda há gente assim, que nos aconchega a alma com a sua grandeza. São sentimentos que apenas se sentem... A gratidão é um deles... Obrigado, gentes de Morais! Talvez para o próximo ano possa ficar para a malhada, "pra buber mais ua pinga"...
"Só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudades da terra"
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